“Aqui é legal de morar. Ninguém vai mexer com vocês. É tranquilo.”
A dica recebida pela Regiane Cristina Albuquerque do Nascimento, a Cris, foi decisiva para que ela e o marido se instalassem em uma travessa da Avenida Paulista, uma das principais vias do país.
Lonas, plásticos e mantas, sustentados por madeiras, canos e bambus, passaram a formar, então, o que a guarulhense de 36 anos chama hoje de lar.
A barraca de cerca de três metros de extensão e no máximo um e meio de largura ganhou forma com colchões usados, cobertores, objetos pessoais, itens de cozinha e de higiene.
“Apesar de estar na rua, aqui é tudo limpinho. Eu gosto de limpeza. Acabei de lavar a calçada. Pode se sentar”, diz Cris, solícita, ao encontrar a reportagem do g1.
Ela está em situação de rua há dois anos – metade deles instalada na calçada lateral do parque Prefeito Mário Covas, na Paulista. Com o marido, já morou em alguns pontos do centro de São Paulo, como o Largo São Bento e Anhangabaú.
“Quem me indicou para ficar aqui foram umas amigas trans que conheci na rua. Aqui era mais tranquilo, diferente dos outros lugares em que fiquei”, comenta.
Crise financeira
A perda de uma renda fixa fez Cris ir para a rua. Ela e o marido recebiam, até o início da pandemia de Covid-19, pouco mais de um salário mínimo cada. Cris, trabalhando como açougueira em uma rede de supermercados. O marido, em um lava-rápido.
Juntos, levantavam cerca de R$ 3 mil por mês, o suficiente para o aluguel de R$ 750, que incluía água e luz. Os dois perderam emprego na mesma época, e viram as economias derreterem.
“A gente tinha economizado um dinheiro, mas zerou. A gente gostava de passear, até pegou um cachorro. Mas, com a pandemia, acabaram nossas economias. Aí ele me falou: ‘Vamos fazer o quê?’. Eu respondi: ‘Vamos pra rua’. E fomos”, conta.
Apesar de não ser o único motivo, a falta de renda é a principal causa a levar uma pessoa a viver em situação de rua, afirma Marco Natalino, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
“O fator econômico inclui falta de renda e de oportunidade de trabalho nos locais de moradia. Isso se manifesta também no caso de pessoas que até têm uma habitação longe dos grandes centros, mas passam a semana ou vários dias dormindo de forma improvisada nas ruas e trabalhando como lavador de carro, ambulante e outras coisas”, diz.
Cenário nacional
O país carece de dados oficiais sobre pessoas em situação de rua. Essa população ficou de fora inclusive do Censo Demográfico 2022, realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), que contempla apenas pessoas domiciliadas.
Natalino explica que mapeamentos são essenciais para a elaboração de políticas públicas voltadas a essas pessoas. O estudo conduzido por ele – justamente com esse objetivo – estima o tamanho da população em situação de rua com base em dados de prefeituras e do Cadastro Único, do governo federal.
Os números consolidados de 2022 apontam pelo menos 281.472 pessoas vivendo nas ruas pelo país, o que representa uma alta de 38% em relação a 2019, período pré-pandemia.
O salto foi de 211% em uma década – em 2012, eram 90.480 pessoas sem um teto no Brasil.
“A partir de 2015, houve crescimento da população em situação de rua motivado pelo fator econômico, com aumento do desemprego, da informalidade, queda da renda e da alta da pobreza”, analisa o pesquisador, apontando o agravamento da situação com a crise sanitária de Covid-19.
Com a dificuldade de consolidação de dados por parte do poder público, os números reais, no entanto, podem ser ainda maiores.
Salto em um ano
A crise financeira também atingiu em cheio Mateus Albuquerque da Silva, de 23 anos, irmão de Cris. Ele tinha uma renda média mensal de R$ 2 mil, mas perdeu os bicos e não conseguiu se recolocar.
“Aí veio a pandemia. Eu ganhava dinheiro, e guardava. Só que, depois, quando fechou tudo e deu lockdown, não consegui mais guardar, porque não tinha como fazer. Só fui gastando, gastando, e não consegui mais ganhar”, relembra.
Sem renda, não deu conta do aluguel, e se viu sem saída. Em 2022, decidiu pedir ajuda à irmã, que o recebeu na barraca. Hoje, a estrutura montada na região da Paulista abriga Mateus, Cris, o marido e um rapaz adotado na rua, além dos oito cachorros deles.
Mateus é mais um entre os brasileiros que fizeram disparar o número de pessoas em situação de rua de 2021 para 2022, quando houve o maior avanço anual desde o início a série histórica compilada pelo pesquisador Marco Natalino.
O salto foi de 21% – 232.147 pessoas – para os atuais 281.472 brasileiros vivendo nessas condições.
Rede de apoio e saúde mental
Além do fator econômico, Natalino aponta outros dois conjuntos de elementos que levam a essa realidade: a quebra de vínculos familiares e comunitários, que formam a primeira rede de apoio, e os aspectos ligados à saúde mental, que incluem o vício em drogas lícitas ou ilícitas.
A pandemia afetou as relações na base, que incluem família e amigos, afirma o pesquisador.
“Mesmo antes do Estado, nós contamos com pessoas do nosso círculo mais íntimo para nos apoiarem em situações adversas. A verdade é que a pandemia esgarçou alguns desses vínculos. Houve muitas brigas, separações, vínculos rompidos. E algumas pessoas também acabaram nas ruas por causa disso.”
Cris e Mateus, irmãos por parte de mãe, não têm uma rede de apoio consolidada. Apesar do contato com o pai de Mateus, padrasto de Cris, eles preferem “se virar”.
“Parente? Parente é nossos dentes”, diz Cris. “Na verdade, os únicos que tenho certeza de que não vão me trair são os meus cachorros. O resto…”, questiona. Mateus é sucinto sobre o tema: “A gente prefere seguir nossas vidas”.
Entre ‘manguear’ e receber auxílio
Conseguir dinheiro é um desafio para os dois, seja catando itens recicláveis pelas ruas ou vendendo produtos como esmaltes, canetas e garrafinhas d’água – essas últimas, recebidas em doações. “No lugar de tomar as águas, a gente guarda e vende. Aí consegue tirar um dinheiro”, diz Cris.
Eles também contam com a ajuda de estabelecimentos, moradores da região e de quem passa por ali. “Comecei a vender esmalte, a pedir – o que o pessoal na rua chama de ‘manguear’. Também vendo a caneta personalizada que o meu irmão faz, além de porta bic [isqueiro].”
Cris recebe o Auxílio Brasil, renda que ajuda a comprar a comida preparada utilizando um pequeno fogareiro à álcool. “No almoço, teve macarrão [ao] alho e óleo.”
Já Mateus não teve a mesma sorte com o benefício. “Eu tentei, mas não consegui até hoje. Eles falavam que eu não preenchia os pré-requisitos. Mas não explicaram quais eram. Não deram atenção”, relata. “Agora já desisti.”
Como frear esse cenário?
O primeiro passo para aprimorar as políticas públicas voltadas à população em situação de rua é melhorando os indicadores, diz Natalino. “Precisamos, primeiro, conhecer melhor essa realidade, para aí podermos tratar adequadamente.”
Em seguida, ele elenca alguns pontos considerados essenciais para amenizar a situação:
- Políticas de transferência de renda
São uma espécie de “vacina” contra os efeitos deletérios da pobreza sobre a vida das pessoas, afirma. “Há uma política de seguro desemprego. Mas, muitas vezes, como não há emprego formal pra essa população, o ideal são políticas de transferência de renda como o Bolsa Família.”
“Seria interessante pensarmos em transferências de renda pontuais para as situações de choque econômico. Às vezes é o desemprego ou a morte da pessoa provedora econômica da família que leva a essa situação de vulnerabilidade. E pode resultar não só em uma situação de rua, mas uma série de outros problemas derivados da pobreza”, alerta.
- Melhora na infraestrutura da assistência social
Isso inclui um atendimento mais digno em espaços de convivência e atendimento psicossocial, além da melhora dos albergues e dos abrigos sociais, com ambientes mais limpos e tratamento de melhor qualidade.
“Eu chamo esse aspecto de reordenamento institucional das políticas de assistência social”, diz o pesquisador.
- Políticas de saúde
O destaque negativo vai para a exclusão dessa população dos equipamentos de saúde. “Às vezes a pessoa chega lá sem documento e não é atendida. Ou chega em uma situação em que é estigmatizada e não consegue atendimento. Isso tem que mudar.”
- Políticas habitacionais
É um aspecto que vem ganhando força, afirma Natalino. Ele explica que existe uma tendência entre especialistas, sociedade civil e governos municipais, estaduais e federal de adotar uma metodologia de ‘moradia primeiro’.
“Ou seja, identificar a situação de rua como um problema, antes de tudo, de falta de moradia. E, a partir daí, pensar em políticas habitacionais.”
“É interessante porque alia o acesso à moradia a serviços de assistência social e serviços psicossociais, para que a pessoa consiga botar sua vida nos eixos. E é o que a experiência internacional mostra que tem melhor resultado”, conclui.
Fonte – G1