Segundo IBGE, mais de 42 milhões de brasileiros são evangélicos. Quase um milhão e meio de praticantes residem no Distrito Federal.
Nesta quarta-feira (30) o Distrito Federal celebra, com feriado, o Dia do Evangélico. Mais de 42 milhões de brasileiros consideram-se evangélicos, segundo o senso de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
No DF, de acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (PDAD) de 2015, são quase 1,5 milhão de praticantes.
O g1 conversou com dois especialistas em religião para explicar o surgimento da religião evangélica, a chegada dela ao Brasil e os principais pontos de destaque da história. São eles:
- Eurico Antônio Gonzalez Cursino dos Santos, advogado, consultor legislativo do Senado na área de Direitos Humanos e professor de sociologia da religião do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB).
- Gidalti Guedes da Silva, professor dos cursos de Teologia e de Filosofia da Universidade Católica de Brasília (UCB), assessor de formação continuada docente da PROACAD|UCB.
Confira as entrevistas:
g1 – Como e em que contexto surgiu a religião evangélica?
Eurico Antônio: Surgiu no início do século XVI na Europa com o protestantismo. A religião evangélica é uma vertente da protestante.
Gidalti Guedes: O segmento religioso que é conhecido hoje no Brasil como evangélico tem sua origem na tradição das igrejas herdeiras da reforma protestante. Essa reforma ocorreu no século XIV e deu origem a diversas vertentes da religião protestante.
Nessa época a igreja cristã já estava dividida, oriente e ocidente, havia varias fragilidades ou varias situações em que a igreja era criticada pelos religiosos, por diversos segmentos. Essa critica se transformou em diversos movimentos de ruptura, que influenciaram a própria religião. Aí surgiu a reforma protestante, surgiram novas vertentes institucional do cristianismo.
g1 – Como chegou ao Brasil e quais foram os principais pontos de mudança até hoje?
Eurico Antônio – Os primeiros protestantes chegados ao Brasil não eram pentecostais, mas sim anglicanos, luteranos, batistas e de outras denominações, e se dirigiam principalmente aos setores mais bem posicionados na vida social.
No início do século XX, os primeiros missionários evangélicos pentecostais chegaram em terras brasileiras, da Assembleia de Deus e da Congregação Cristã do Brasil. É importante fazer a distinção entre aqueles protestantes clássicos, que chegaram primeiro, e esses últimos. Até 1808, a única religião possível no Brasil era a católica.
“A partir da abertura dos portos, houve uma ruptura. Assim, ao longo do século XIX, com a independência política iniciada em 1822, chegam os primeiros missionários.”
Este primeiro protestantismo era dirigido às camadas mais bem assentadas. Na virada do século XIX para o século XX, especialmente com a Assembleia de Deus, chega um protestantismo voltado aos pobres, que prega para o pobre (tarefa historicamente exclusiva da Igreja Católica), para a camada menos privilegiada.
Nos anos 70, surge o neopentecostalismo, caracterizado pelo apelo emocional aos cultos, com cantos e pregações em que a emoção é o ponto central. No final da mesma década, a Universal é criada, uma igreja que domina o funcionamento dos meios de comunicação de massa.
Gidalti Guedes – Primeiro, foi no século XVI, quando os Huguenotes franceses buscaram refúgio no Brasil, na Baía de Guanabara, mas eles não se fixaram. No século XVII os holandesas, herdeiros da doutrina calvinista, chegaram a impactar a cultura no nordeste, mas os portugueses retomaram a gestão daquele espaço e restabelecendo o catolicismo como uma religião oficial da região.
O protestantismo vem e começa a se estabelecer no século XIX. Primeiro, com a abertura dos portos para nações amigas.
As primeiras igrejas foram as anglicanas e luteranas, mas não viram para evangelizar, vieram para garantir que os ingleses, alemães e americanos tivessem direito ao culto, um espaço reservado para sua prática religiosa. Nesse momento, o país tinha ainda o catolicismo como religião oficial, que só acabou com a República.
Depois da Guerra da Secessão dos EUA, na segunda metade do século XIX, o protestantismo vem para o Brasil em missão: congregacionistas, batistas, metodistas, e presbiterianos se estabelecem com uma prática de ensinar e evangelizar os brasileiros. Nesse momento, há um tipo de combate ao catolicismo, que começa a receber críticas da parte desses religiosos protestantes, que buscam converter os brasileiros para a prática deles.
“No século XX surge uma outra realidade em que não há mais uma religião oficial, há uma abertura para o crescimento do segmento protestante, que passou a ser chamado de evangélico pela ênfase em pregar o evangelho.”
Em 1910, as igrejas chamadas históricas, de imigração e missão, começaram a crescer, mas além disso houve na igreja Batista uma ruptura. Dessa ruptura surge a Assembleia de Deus e a Congregação Cristã do Brasil.
Em 1950, surge uma igreja pentecostal com ênfase na cura divina e nos milagres. A partir das décadas de 80 e 90 surge o neopentecostalismo, uma igreja que dá ênfase na prosperidade financeira. Ainda mantém a doutrina do Espírito Santo, da busca de cura divina, mas a mensagem é muito voltada para prosperidade financeira dos fiéis.
Vale ressaltar que, durante todo esse tempo, as igrejas históricas mantiveram seus trabalhos e continuaram crescendo, mas muito pouco quando comparamos ao crescimento dos pentecostais. Hoje, podemos dizer que a maioria absoluta pertence aos pentecostais.
Um dos pontos de mudança mais importantes é que o pentecostalismo alcança demandas religiosas das populações urbanas, principalmente da periferia. O movimento de crescimento do pentecostalismo acompanha o crescimento urbano brasileiro, tornando esse número expressivo.
g1 – Há um momento específico em que a religião, especialmente a evangélica, tornou-se “política”?
Eurico Antônio – Não há um momento. O que ocorre é uma mudança como ponteiro de relógio. Nós não percebemos, mas ela ocorre aos poucos.
No início, eles enxergavam a política como algo que não era passível de ser misturado à religião. Eram assediados por políticos que enxergavam as igrejas como pontos importantes de votos, mas não se misturavam.
No final da década de 1990, começa a se desenvolver uma espécie de consciência política. Eleger pastores (levar a Igreja à política ao invés de levar a política à Igreja), por exemplo, torna-se uma solução para não deixar que se percam os valores pregados por eles.
Observe-se que, de uma forma ou de outra, a relação entre protestantes evangélicos e participação política mostra o fato de que nem todos os desprivilegiados brasileiros se viam contemplados pelas políticas sociais dos governos de plantão.
“Alguns dos grupos mais pobres da sociedade se viram melhor contemplados pelo discurso político conservador e, com o advento da democracia, buscaram alcançar o Estado e lá se fazerem presentes.”
Gidalti Guedes – Não existe nenhuma atividade humana que não seja política. Toda e qualquer atividade, especialmente a religião, sempre tem desdobramentos políticos, mesmo que você não fale explicitamente de política partidária.
O segmento evangélico começou a ter maior impacto na política partidária brasileira especialmente a partir do crescimento dos pentecostais. Nós já tivemos deputados evangélicos ainda na década de 1930, por exemplo, mas tinham pouca expressão.
A partir do crescimento dos pentecostais, a maneira como lidam com política é diferente da maneira como os protestantes históricos lidam. Os históricos geralmente não impõem um candidato, não tratam o rebanho como se fosse voto de cabresto. É claro, isso pode ser diferente, mas geralmente eles respeitam a liberdade de voto dos membros.
“Enquanto isso, os pentecostais têm a tradição de indicar um candidato próprio, alguém da própria igreja ou que não seja da igreja, mas que a cúpula decidiu apoiar. Por isso, especialmente a partir de 1980, há uma presença maior de evangélicos na política, e surge a bancada evangélica, resultado desse crescimento dos pentecostais na política.”
g1 – O que explica o fenômeno ocorrido dentro dos templos religiosos durante as eleições de 2022 no Brasil?
Eurico Antônio – Tudo o que há, até agora, são especulações. Não é possível explicar ainda o que ocorreu. Sabemos que a religião, seja evangélica ou católica, sempre esteve presente na política.
Católicos educam presidentes e, de modo geral, as elites políticas há muitos anos. Temos escolas e universidades católicas, por exemplo. Dada nossa formação histórica, a religião católica, apesar de sua opção pelos pobres, sempre foi a religião “natural” dos brasileiros e chegava, e chega, ao poder “de cima para baixo”.
“Os evangélicos em massa na política, cada um com um voto na mão, buscam o poder ‘de baixo para cima’, pela democracia e pelo voto.”
Mas, quando chegam à arena política, descobrem que ela tem suas próprias regras, que não se pode propor agendas políticas que impliquem a exclusão dos que têm outros credos. Essa não é a lógica da política, que é muito mais includente do que a religião, que tem formato histórico “pré-moderno” – isto é, não há mesmo lugar para todos na barca da bem-aventurança.
É normal que muitos – os que não têm o credo certo, os infiéis, os mundanos ou qualquer outro tipo de pecha – pereçam. A lógica da política é “moderna”, ou seja, inclui independentemente da crença religiosa.
Gidalti Guedes – Não são todas as igrejas, mas em algumas têm acontecido um posicionamento político mais enfático de lideranças religiosas que passaram a utilizar o púlpito da igreja para fazer uma defesa explícita de uma ideologia política.
Esse fenômeno de utilização dos púlpitos para defesa de um partido político específico é mais recente e começou a crescer com um movimento que se denomina conservador no Brasil. Trata-se de um conservador no campo da moral cristã.
Alguns sociólogos da religião e pensadores têm tentado compreender esse movimento dentro desse crescimento dos chamados conservadores. É um movimento que, muitas vezes, se coloca como antidemocrático, então é perigoso nesse sentido.
“Você tem direito de fazer defesas das doutrinas, postulados morais, condutas. Mas a defesa de valores específicos de uma religião não pode ser imposta ao coletivo. O Estado não pode ser utilizado como uma ferramenta para que você imponha ao coletivo uma crença que é sua.”
Devemos adicionar uma ressalva de que diversos movimentos evangélicos, diversas lideranças que não concordaram em utilizar o templo e a autoridade para criar uma espécie de curral eleitoral. Concluo dizendo que precisamos tomar muito cuidado, todas as lideranças religiosas precisam ter cuidado e zelo para não transformar os púlpitos em lugares de defesa político-partidária.
Você pode falar de valores, princípios, conduta social, mas transformar os púlpitos na defesa político partidária compromete a pregação do próprio evangelho. A fé cristã precisa ter liberdade e autonomia para ser voz profética para, se for necessário, denunciar injustiças do mundo, desigualdades, abusos contra a humanidade. Quando a religião é instrumentalizada pelo poder, ela perde a força, a autonomia e a liberdade.
Fonte: G1